A interpretação burocrática da “lei de Deus”
O arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, anunciou há alguns dias a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto dos gêmeos que esperava uma menina de nove anos, estuprada pelo padrasto em Pernambuco. Pelo direito canônico, a excomunhão em caso de aborto é automática, porque a vítima do atentado à vida é particularmente indefesa. Pelo direito penal, por outro lado, o aborto é permitido em caso de estupro ou se houver risco de morte para a mãe. Disse d. José: “A lei de Deus está acima de qualquer lei humana”.
Concedamos, por alguns momentos, que a “lei de Deus” esteja realmente acima da lei dos homens. Ainda assim, quem interpreta a lei não é Deus em pessoa, e sim os próprios homens, razão pela qual o fundamentalismo de d. José não tem cabimento. O caso da menina estuprada é tão cristalino em favor do aborto que somente um burocrata religioso poderia invocar a "lei de Deus” para punir os médicos e a mãe.
D. José poderia ter tido a sabedoria de Abraão, que corajosamente negociou com Deus na célebre passagem da destruição de Sodoma e Gomorra. O diálogo está no Gênesis, capítulos 18 e 19:
23 E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio?
24 Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela?
25 Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?
26 Então disse o SENHOR: Se eu em Sodoma achar cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.
27 E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza.
28 Se porventura de cinqüenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco.
29 E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
30 Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta.
31 E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte.
32 Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez.
Ou seja, em sua oração, Abraão apostou no senso de justiça de Deus, apesar da fúria contra as pecadoras Sodoma e Gomorra. O patriarca das religiões monoteístas sabia que Deus pouparia alguns pecadores, se isso fosse salvar os justos. Esse é o amor que a religião deveria transmitir.
Não é esta, porém, a lição de d. José neste triste episódio. Se a “lei de Deus” fosse seguida como defende o arcebispo, a menina estuprada, além de todo o drama de ter sido violentada e de ter engravidado com apenas nove anos de idade, correria o risco de morrer. Para d. José, isso não importa. O que importa é que todos os pecadores devem pagar, mesmo que junto com eles pereçam os justos e os inocentes.
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